Recebemos do autor brasileiro Piaza Merighi o livro Sobre Deuses e Seres Rastejantes: a Balada de Gundrum (que você pode adquirir aqui), publicado pelo Grupo Novo Século. O autor é um fluminense da pequena Porciúncula, fã de RPG e fascinado pelo universo das narrativas fantásticas. Ele nos conta que começou a desenvolver seu gosto pela escrita “bancando o narrador” em sessões de RPG. Ao perceber que seus amigos comentavam e discutiam suas histórias por dias, ele decidiu tomar coragem e colocar suas ideias no papel para compor a obra. Piaza esteve presente também na Bienal do Rio, neste ano de 2019, apresentando seu livro.
Sobre Deuses e Seres Rastejantes é um enredo totalmente original, e percebemos que o autor teve muito cuidado de pensar a história com a calma e a pegada necessárias para que qualquer pessoa, mesmo não sendo fã de RPG, possa compreender e aproveitar. Ele tem um estilo muito direto e objetivo, mas ao mesmo tempo sabe dar as pausas necessárias para o leitor refletir sobre os acontecimentos, sem que as cenas fiquem naquele “atropelo” característico de muitas narrativas de aventura da atualidade. O narrador-personagem da história para em vários momentos para explicar elementos do universo ali criado, mas sem recorrer a longas digressões ou devaneios, o que torna a leitura muito prazerosa e nos integra com o enredo.
A história nos transporta a um universo de monstros e seres mitológicos, mas não pelo lado convencional dos heróis cheios de virtudes, afastando-se completamente da perspectiva do humano. Esse é um ponto interessante de construção dos personagens, pois nos últimos anos temos observado um movimento de tentar trazer os protagonistas para uma condição mais “plausível” (o herói que não é exatamente um conjunto de valores morais e éticos considerados bons)
No entanto, esse mesmo movimento de tentar fugir do óbvio acabou criando uma mesmice: agora, a maioria dos protagonistas é de personagens falastrões que fazem questão de não esconder seus defeitos. Um dia, eles descobrem uma injustiça no mundo e saem batendo em tudo e todos que podem para desfazer o “mal”, e parece que só a rebeldia deles é que pode realizar esse feito.
Sobre Deuses e Seres Rastejantes nos traz uma perspectiva diferente: a visão de um “monstro”, o minotauro Gundrum, que mesmo dentro de sua própria realidade (a vila de minotauros chamada Ekhaya) já é um renegado por não ter as mesmas características físicas de sua espécie. Por não se encaixar naquela sociedade, ele deixa de participar das atividades comuns dos minotauros, tornando-se um bruxo e sendo visto por todos da vila como uma aberração. Crescer sofrendo essa constante negação de seus conterrâneos certamente é o que o fez desenvolver uma personalidade completamente arredia e avessa a convenções sociais de certo e errado, mesmo tendo consciência de que elas existem.
E é nesse aspecto que a história se destaca, pois não temos aqui um ponto de vista de um infeliz meramente inocente diante de um mundo cruel que o oprime. Gundrum sabe bem o seu lugar no mundo, e sabe que sua existência é uma afronta a toda o conceito convencional de beleza e equilíbrio da natureza. O que ele procura não é fama ou mesmo a justiça em seu sentido mais elevado, por isso se junta a outros renegados como ele para tentar descobrir coisas estranhas que andam acontecendo a sua vila.
De todo modo, nosso narrador-protagonista não pede a sanção do leitor para ser quem é, ele já se aceita muito bem e quer continuar existindo daquela maneira, mas para isso precisa procurar uma solução para um problema que o afeta diretamente, sem que seja motivado pela sede de vingança ou pela oportunidade de se tornar um herói.
O texto é repleto de cutucadas em aspectos sociais do nosso mundo. Pequenas ironias aqui e ali nas falas dos personagens nos fazem ter aqueles pequenos lampejos de reflexão sobre como nos portamos e o nosso impacto na vida dos outros. Se você é daqueles leitores que gostam de um sub-texto bem construído, o livro certamente vai te agradar ainda mais, porque representa uma ótima mensagem sobre as hipocrisias da sociedade.
Sem contar muito para não estragar a sua experiência, trata-se de uma obra muito bem escrita e com um potencial para criar um universo fantástico bastante produtivo. Monstros e humanos lutando lado a lado para combater um mal desconhecido é algo que não vemos todos os dias, ainda mais com uma perspectiva tão única e original. Vale certamente a sua leitura! Ah, e o livro não é comprido, a partir do momento que você se ambienta na história, a leitura flui muito rápido.
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Que resenha legal! Incrivelmente feliz por terem gostado
Obrigado por compartilhar conosco, Piaza. Desejamos muito sucesso pra você.
Eu li esse livro depois de ver uma materia do Listas Literarias, e sem brincadeira, achei melhor que muita coisa estrangeira que li por aí, tem uma vibe meio “era hiboriana’ que é bem foda
Com certeza, Paulo, e mesmo quem não é fã de RPG vai gostar muito.
Então cara… era hiboreana não tem nada a ver com RPG, é o “cenário” das histórias do Conan … mas se o livro tem esse estilo acho que deve compensar uma olhada
Poxa, desculpa, me expressei mal. Na verdade só conheço o Conan daquele filme com o Schwarzenegger, mas sei que tem toda uma mitologia ali, e confesso que não tenho um conhecimento muito grande sobre esses universos.
Sobre o livro, porém, sem dúvida é um dos melhores que li nos últimos tempos. Abraço! Obrigado pelo comentário.
Não tem que pedir desculpa kkk, muita gente associa Conan com RPG, mas origem do cimério é bem mais antiga, o Robert Howard começou a publicar os contos dele lá na década de 30, naquelas revisas pulp ( e o filme do Schwarzenegger é uma fonte bem legal pra conhecer o personagem)
Valeu mesmo pela dica, Lucas!
Ok, me ganhou no “sem que seja motivado pela sede de vingança ou pela oportunidade de se tornar um herói”. Se foge da mesmice atual dos livros de fantasia já vale uma tentativa
E melhor ainda, Adão, sem ficar tentando se provar o tempo todo para o leitor. Muitos protagonistas ultimamente assumem uma postura rebelde quase no automático só porque isso virou o novo “código de conduta”. Gundrum certamente vai muito além disso, tenho certeza que vai gostar.