Como já comentamos em outro texto, quem foi criança nas décadas de 80 e 90 (e até no início dos anos 2000) passou uma boa parte do tempo na frente da TV. A internet até existia, mas ainda não fazia parte da vida da maioria das pessoas, e mesmo quem tinha acesso a ela não tinha muito o que fazer lá, porque a maioria dos sites só tinha texto acadêmico para ler. Celular então era só um trambolho que alguns poucos podiam carregar pra ter a comodidade de não precisar usar um orelhão quando estivesse na rua (mas era chique ter um).
Nessa época, o entretenimento voltado às crianças vinha principalmente na forma de revistinhas da Turma da Mônica e desenhos que passavam aos montes na TV aberta (TV por assinatura só os ricos tinham, nem pra classe média era muito fácil sustentar). Claro que existiam HQs e até mangás (e ninguém dava lá muita bola pra diferença entre eles), e na TV não era diferente, os animes japoneses se misturavam com as animações dos americanos e todo mundo se divertia, sem ficar ofendido porque chamavam o anime de “desenho animado” e vice-versa.
Já comentamos também que a TV Manchete foi uma das emissoras que mais investiu na programação destinada às crianças. Houve um tempo em que a emissora exibia animes praticamente durante toda a tarde e início da noite. As crianças, claro, adoravam, mas nem faziam ideia de que aquilo já era um forte indício da crise financeira na emissora, que foi extinta definitivamente em 1999, dando lugar à atual RedeTV.
As apresentadoras da programação infantil
Mas não era só a Manchete. Praticamente todas as emissoras da TV aberta contavam com algum tipo de programa destinado às crianças, geralmente pelas manhãs (as crianças mais novas, como ainda é costume, estudavam à tarde). É nessa época que surgiram as apresentadoras infantis mais famosas, como Xuxa, Angélica e Eliana, e também outras que procuravam imitá-las ou se aproveitar do nicho que elas criaram. A ausência de uma figura dessas hoje em dia também é um forte indício de que a programação infantil não tem mais o mesmo apelo de antes.
É até questionável hoje a maneira como as emissoras aproveitavam a imagem delas, que eram quase sempre loiras e usavam roupas curtas, por vezes até mostrando demais, mas era a forma como a TV ganhava seu dinheiro explorando as crianças e… também os pais (os homens adultos). Hoje até há uma certa nostalgia em torno dessas atrações, mas fato é que elas estimulavam a criação de estereótipos (afinal o Brasil não é um país de loiras altas e magras), e no fim as próprias emissoras foram vendo que isso não era mais adequado, colocando no lugar apresentadore(a)s mais jovens e com aparências diferentes.
A proibição da propaganda na programação infantil
Mas talvez nenhuma outra questão tenha influenciado mais do que o cerco às propagandas de produtos infantis. Em 2014, inclusive, isso foi até tema de redação do Enem, mas a discussão é bem mais longa, vindo desde a época em que indústrias de produtos alimentícios começaram a colocar “brindes” nas embalagens na forma de algo que as crianças gostavam. Não há como dizer exatamente qual empresa fez isso pela primeira vez, mas só lembrar dos chicletes com figurinhas, dos salgadinhos com brinquedos (o mais famoso deles o tazo) e também do Kinder Ovo, que todo adulto de hoje se lembra de quando custava R$ 0,50 (bons tempos, mas esses mesmos centavos representam uns 5 reais de hoje com a inflação…).
As propagandas desses produtos permeavam os intervalos dos programas infantis. Eram praticamente hipnóticas (algumas literalmente, como a do chocolate Batom), mostrando bonecas e carrinhos que andavam sozinhos, um monte de coisas que as crianças sentiam que precisavam ter embaladas em coisas de comer nada nutritivas. O entendimento de que isso era apenas uma estratégia para ganhar dinheiro em cima da inocência das crianças, aliado ao fato de que a obesidade infantil cresceu muito nesse mesmo período, provocou inúmeras discussões sobre a ética publicitária, o que acabou, no fim, limitando a atuação das empresas nesse segmento.
É importante ressaltar que não foi uma única lei que acabou com isso, mas um novo entendimento sobre leis que já existiam (como o Estatuto da Criança e do Adolescente), além de resoluções de órgãos competentes, como o Conanda), que limitaram tanto a forma de fazer propaganda que acabou se tornando inviável para as empresas (o que era a intenção desde o início). Hoje ainda vemos propagandas de brinquedos e desenhos na TV, mas de forma muito menos incisiva do que eram antigamente.
A programação infantil e a internet
Outra coisa que provocou uma debandada do público das TVs foi o instrumento que estamos usando para transmitir e ler este texto: a internet. Desde o início dos anos 2000 o número de usuários na rede só aumenta, e mesmo que a internet não tivesse roubado nenhum espectador da TV, as crianças acabaram encontrando muito mais formas de entretenimento no YouTube do que a minha geração (pessoas na casa dos 30) jamais teve, nem somando todas as emissoras que existiam. Não preciso dizer que até os adultos abandonaram a TV e partiram para as plataformas on-line para se informar e se divertir também.
E outro detalhe: o meio utilizado também mudou. Se antes precisávamos de um trambolhão com CPU, monitor, teclado e mouse, hoje qualquer pessoa tem a internet na ponta de seus dedos, com um celular que se adapta perfeitamente às mãos pequenas das crianças, sem contar que assim elas podem imergir no mundo só delas sem ocupar a TV que os adultos assistem. Nem quero entrar no mérito de discutir se a atitude de entregar celulares às crianças está certa ou errada, só constato que isso é um fator crucial para a falta de interesse delas em outras formas de entretenimento audiovisual.
A internet leva uma vantagem ainda maior por permitir escolher o que e como vamos assistir. Não precisamos ficar zapeando canais ou esperando pra começar a atração que queremos. Hoje conseguimos facilmente encontrar o que queremos e, na maior parte das vezes, sem precisar pagar a mais por isso (às vezes com o incômodo de ver uma propaganda ou outra, mas ninguém nem liga). Isso, claro, cria uma geração de pessoas que não abandonam essa comodidade em troca de outros meios.
Por fim, percebemos que a extinção da programação infantil na TV não tem nada a ver com um plano de dominação mundial por parte dos iluminati. Basta entender que os tempos mudaram, e as formas de consumir conteúdo também. Quem sabe com a internet fazendo parte cada vez mais da vida das pessoas acabemos inventando até mesmo novas formas de entretenimento que passem pelo fim das redes sociais, ao menos da forma como as conhecemos hoje. Resta esperar pra ver. Quem sabe daqui a alguns anos um curioso do futuro caia nesta página e acabe discutindo o fim da programação infantil na internet, não é mesmo?
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