De tudo que se pode afirmar sobre o Brasil, parece haver apenas um ponto que todos os brasileiros, de direita, de esquerda, ricos e pobres concordam: o país não é para amadores. Nos últimos dias, uma polêmica envolvendo a apresentadora Xuxa acabou se tornando mais uma dessas questões que os inquisidores julgam no tribunal da internet.
Xuxa, que já há algum tempo tem sido ativista do veganismo, defendeu que o sofrimento animal em testes de cosméticos e remédios poderia ser aliviado se fizéssemos esses testes com a população carcerária do Brasil. Ela não se referia a toda a população carcerária, mas especificamente àqueles indivíduos que cometeram crimes graves e demorariam “quase a vida toda” para sair da prisão.
Sem entrar tanto no mérito da questão, que envolveria uma longa discussão sobre ética, direito, medicina e tantas outras áreas (algo que não dá, portanto, pra reduzir a um texto de mil palavras), é importante nos atentarmos ao fator sociológico em questão.
É uma verdade que o fim do sofrimento animal já é reconhecido como um dos maiores desafios da nossa espécie e devemos ser muito criteriosos ao reconhecer que o nosso nível de bem estar atingido hoje (falando de uma média geral da população) só foi possível graças a muita exploração animal.
Outro fato reconhecido é que temos uma enorme população carcerária, que inclusive cresce ano a ano, com índices de produtividade bem baixos, que resultam em estimativas de 70% de reincidência (porém, com algumas ressalvas exploradas neste estudo do IPEA).
Em suma, um sistema que deveria ser o responsável não apenas por punir, mas recuperar os criminosos (evitando que voltem a cometer crimes) acaba sendo na verdade um depósito de gente, cuja função é meramente decorativa: o Estado joga essas pessoas lá para limpar as ruas, mas não há políticas sociais efetivas na luta para, em primeiro lugar, evitar os crimes nem que façam as mesmas pessoas pararem de cometê-los quando inevitavelmente voltam às ruas, criando um eterno círculo vicioso.
Todo mundo acha lindo que na Europa e em países mais “civilizados” os governos estejam fechando presídios por falta de presos, mas por aqui o discurso corrente é de que precisamos de mais cadeia, mais polícia, mais gente presa.
Nos anos 1990 e início dos anos 2000, eram comuns os programas policiais, os jornais que “se torcer, saía sangue”, e ficávamos horrorizados com tamanha barbárie nas nossas cidades, bairros e até na nossa própria rua, mas sem perceber que quem patrocinava tais programas eram as empresas de seguro de carro, de residência ou de segurança particular. Porém, defender um caminho diferente para a solução da violência no Brasil usualmente é visto como “defender bandidos” e quem discorda disso, “que leve um pra casa”.
Vejam bem, não estou dizendo que a violência não existe e que não precisamos prender criminosos, mas que o famigerado déficit carcerário não se resolve apenas com mais prisões. Estudos apontam que aproximadamente 40% dos presos no Brasil estão ocupando uma vaga nos presídios de forma provisória, ou seja, aguardando por uma sentença que não chega para dizer quanto tempo mais vão ficar, mas que também não os tira dali.
Considerando ainda que aproximadamente 50% foram presos por tráfico, roubo ou furto (não há dados aqui que falem sobre uso de violência) e que a maioria é jovem, negra e pobre, percebemos que na verdade a compulsividade por prisão só consegue mesmo jogar toda uma população já desamparada nas mãos do crime organizado.
Mas, voltando a Xuxa, ela não está errada em sua intenção de oferecer uma possibilidade para pessoas que já estão condenadas (não só no sentido judiciário, mas humano também, pois dificilmente um egresso do sistema penal consegue novas oportunidades), porém, não dá pra pensar em uma sociedade mais igualitária sem pensar em recuperar essas pessoas de dentro pra fora.
Não é só uma questão do “povo dos direitos humanos” (expressão bizarra, a meu ver, pois quem seria contra?) achar que presos devem ser tratados com um pouco mais de dignidade, deveria ser uma questão de todos, afinal, todo mundo quer ruas seguras, quer poder sair à noite sem se preocupar, quer liberdade sem precisar de segurança particular (aliás, por que será que boa parte das empresas do setor são ligadas a policiais?).
Não vamos conseguir resolver a violência sem ir a fundo na raiz do problema: a desigualdade social. E se temos uma população carcerária enorme e improdutiva, o motivo é também a desigualdade. Xuxa foi infeliz na colocação, mas já pediu desculpas, demonstrou entendimento do problema e (tomara) pode usar toda a sua publicidade para promover ações nesse sentido. Não existe preocupação ilegítima nesse mundo louco em que vivemos, mas não podemos nos esquecer de uma ao defender outra.
O que tem a ver com Falcão e o Soldado Invernal?
No episódio da última sexta (26), a série do Disney+, que vem preencher o vazio deixado por Wandavision, mas sem ainda empolgar tanto, lançou uma “arma de Tchecov” (quando se insere algum elemento na história sem desenvolvê-lo ou justificá-lo, de maneira que ele possa ser retomado mais tarde) que deve ser utilizada nos próximos episódios e se estender até ao MCU.
Experimentos que datam ainda da Segunda Guerra Mundial, com o soro de supersoldado, foram realizados com soldados negros, e, pra resumir, Isaiah Bradley foi o único sobrevivente, e ele assumiu, por um tempo, o manto de Capitão América.
Apesar de se situar na ficção, o caso tem inspiração em um episódio real, conhecido como Estudo de Tuskegee, que na década de 1930 pretendia estudar a sífilis em homens negros. Claro que o estudo compreendia a infecção desses homens pela doença, sem revelar a eles que estavam infectados. Visto com os olhos de hoje, trata-se de uma aberração, mas lembramos que na época não existia regulamentação específica para experiências científicas em humanos, além do fato de que o preconceito era muito mais evidente, e foram selecionados homens negros justamente porque seriam “descartáveis”.
A experiência científica controversa levanta até hoje questões morais e éticas envolvendo experimentos em humanos. Essa parte foi muito mais regulamentada ao longo dos anos, e hoje as pessoas sabem exatamente do que estão participando e quais os riscos a que estão submetidas. Falcão e o Soldado Invernal traz essa história novamente para discutir o preconceito racial e a ética científica, pontos que nunca devem ficar de fora ao defendermos iniciativas de “fazer experiências” com um grupo ou outro.
É curioso notar que mesmo sem o possível conhecimento da série, Xuxa tenha levantado a questão na mesma semana que o personagem de Isaiah Bradley tenha sido apresentado ao MCU, que nos sirva de lembrança que às vezes é a arte que imita a vida, e não o contrário.
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