A Matrix é um sistema, Neo. Esse sistema é o nosso inimigo. Quando você está dentro, você olha em volta, o que vê? Homens de negócios, professores, advogados, carpinteiros. As mentes das mesmas pessoas que estamos tentando salvar. Mas até fazermos isso, essas pessoas ainda fazem parte desse sistema e isso faz delas nossas inimigas. Você tem que entender, muitas dessas pessoas não estão prontas para serem desplugadas. E muitas delas estão tão acostumadas, tão desesperadamente dependentes do sistema, que vão lutar para protegê-lo.
Fala do personagem Morfeu em Matrix (1999).
Antes de começar este texto (e explicar o sentido dessa epígrafe), é preciso deixar claro alguns pontos:
- Sendo um homem cisgênero, não posso falar sobre como é ser transexual, mas a reflexão aqui não é sobre esse tema, e sim sobre o significado do filme.
- Conservadorismo não é um conceito acabado e fechado em si, e também não entendo como algo a ser combatido irremediavelmente, mas algo sobre o qual devemos refletir de forma crítica (sim, da mesma forma que qualquer outra “ideologia”).
- E você, amigo nerdola “conservador”, fique tranquilo que não quero destruir a família tradicional, ou melhor, a imagem que você criou dela, o que quero aqui é mostrar que existem horizontes aos quais você ainda não chegou (algo a ver com red pill?). Ah, pode comentar à vontade, não temos medo de debate aqui.
- Uma alegoria é mais do que uma metáfora. A metáfora é uma comparação feita de forma pontual, a alegoria é o conjunto de todas as metáforas que conduzem a um sentido mais amplo.
Espero que esteja claro, então vamos lá!
Na cena citada na epígrafe que abre este texto, Morfeu (vou escrever assim pra adotar a grafia em português) explica ao recém despertado Neo o que é a Matrix e o que eles estão fazendo lá. A ideia da luta “contra o sistema”, a crítica social, não é nova, obviamente, já estando presente em diversos títulos memoráveis, como Admirável Mundo Novo, 1984 e até em ícones da cultura pop, como Star Wars, e tantas histórias de futuros distópicos, como Jogos Vorazes, Divergente e Maze Runner.
Mas se a ideia não era nova, Matrix conseguiu trazer à tona um universo totalmente inovador, com discussões filosóficas presentes em cada longo diálogo no qual se explicavam todas as entranhas do enredo (exigência do estúdio, pois a trama era “complicada demais”). Levantando então questões ligadas ao mito da caverna de Platão, Alice no país das maravilhas e até mesmo às religiões (isso pra dizer o mínimo das referências que aparecem), o filme se tornou um marco por questionar a própria realidade diante dos nossos olhos.
Mas esse questionamento da realidade, aparentemente, não se traduziu de uma forma objetiva para todas as pessoas. Do ponto de vista de alguém que acredita piamente no conservadorismo como solução do mundo, a “luta contra o sistema” só tem um significado: lutar contra qualquer ideia progressista (e a mesma lógica se aplica no sentido oposto). Nesse meio, vivemos aquele sentimento irresistível de achar que “eu estou certo e quem não concorda comigo é burro ou mau-caráter”. Digo “sentimento irresistível” porque queremos sempre acreditar que nossa visão de mundo é a verdade.
Mas não digo que não exista gente burra ou mau-caráter no mundo, na verdade, o maior problema dessa visão dualista é que a convivência com a pluralidade deixa de ser estimulada para que cada grupo ou cada indivíduo apenas procure a reafirmação de suas ideias (e as redes sociais amplificaram ainda mais tudo isso). Poucos querem ser questionados sobre suas verdades, mas todos acreditam (ou desejam acreditar) ter encontrado a “iluminação”, o caminho certo da salvação moral de todos, geralmente sob a batuta de algum guru que fala “as verdades que ninguém quer ouvir”. Verdades que, no fim das contas, não passam de expressões de um preconceito arcaico.
Aí que chegamos a um conceito importantíssimo no mundo (des)conectado de hoje: a pós-verdade (palavra do ano do dicionário Oxford em 2016). Para resumir bem, ela pode ser definida como “a verdade em que você escolhe acreditar”, ou seja, independe dos fatos concretos, estando mais relacionada à percepção subjetiva em relação a eles. Assim, a resposta para uma pergunta como “Lula roubou?” simplesmente não tem importância factual: quem acredita que sim vai continuar acreditando, não importa quantas sentenças livrando a cara do ex-presidente sejam promulgadas; por outro lado, para quem acredita que não, ele continuará inocente, não importa quantos juízes o condenem.
Mas não estou dizendo isso para julgar o mérito dessa questão específica (como falei, a resposta para ela não existe na prática), meu ponto é que a pós-verdade atual implica justamente essa verdade relativa, em que não apenas cada um acredita no que quer, mas acredita que aquele é o único caminho certo, repelindo veementemente qualquer ideia do lado oposto. Dessa forma, todos se blindam de influências externas, recusam-se a aceitar qualquer mínima interferência nessa sua forma de pensar e agridem (muitas vezes com violência física) qualquer um que ouse questionar suas “verdades”. Qualquer semelhança com as brigas políticas de hoje não é mera coincidência.
Quando confrontados em suas contradições, os sujeitos da pós-verdade lançam a cartada final: “mas essa é a minha opinião!”. Como se “opinião” fosse alguma coisa muito subliminar que não pode ser alterada ou ser questionada. Certas de suas opiniões, essas pessoas seguem causando estragos, e a mais recente dessas obras é o apoio incondicional a um presidente que mata, desinforma e instaura um verdadeiro caos social para se manter no poder e não precisar responder por seus crimes.
Em uma das pontas desse movimento guiado por pós-verdades está o conhecido MGTOW (que na sigla em inglês significa algo como “homens trilhando seu próprio caminho”), que prega… sei lá o quê, mas eles odeiam mulheres e rejeitam qualquer relacionamento com uma. Mulheres, para eles, são no máximo algum objeto de prazer momentâneo que eles podem descartar facilmente. Mas uma coisa curiosa é que eles entendem essa repulsa pelo feminino (e também por diversos grupos, como gays, negros e outros) como uma “iluminação”.
Do mesmo jeito que Neo toma a pílula vermelha e acorda para a realidade, eles acreditam estar despertando para um “mundo real” ao enfiar essas ideias tortas na cabeça. Aliás, agem como se fossem os donos de uma verdade que ninguém mais conhece, mas que só faz sentido mesmo no universo de faz-de-conta deles.
Talvez isso não seria nenhum problema se fossem só pessoas de mente fraca que reprimem seus sentimentos ocultos, mas esses movimentos ganharam adeptos, e ainda que sejam uma minoria, são bem barulhentos e arredios. Atentados em escolas, feminicídios e outros crimes bárbaros têm, com toda certeza, muita relação com isso (embora possam, claro, ter outras motivações, mas certamente são levados por essa ideia de que o ser “iluminado” tem que punir seus algozes).
Voltando à epígrafe e à ideia da pós-verdade, o que quero dizer é que cada um interpreta a “luta contra o sistema” da forma como convém, porém os movimentos red pill ainda têm o agravante de que o tal “sistema” não é um conjunto de coisas que devem ser modificadas para se obter a justiça (um fim), mas sim um inimigo concreto a ser combatido (os comunistas, os ativistas de direitos humanos etc.), de preferência morto (moralmente ou literalmente) com requintes de crueldade para servir de exemplo para a História. A guerra pelo controle cultural não é nova, novas mesmo são as armas usadas para isso e as motivações que cada grupo apresenta.
Esquerda e direita são visões políticas de como se pode melhorar a sociedade para se obter a justiça em um conceito mais amplo, mas nunca essas palavras estiveram tão estigmatizadas quanto hoje. Praticamente ninguém sabe qual é a diferença entre elas, mas todos sabem apontar para o lado “oposto” e acusá-lo de todos os crimes e barbaridades possíveis. Nem vou me alongar pra explicar isso, porque não é o assunto… infelizmente a falta de debate civilizado e ordeiro is the new black, e não adianta entrar nessa seara.
A “revelação” da alegoria trans em Matrix e seus desdobramentos
Desde que abriram ao mundo a sua condição de mulheres trans, as diretoras de Matrix, Lilly e Lana Wachowski, foram questionadas sobre a relação de sua identidade de gênero com as alegorias presentes nos filmes. Recentemente, elas revelaram que sim, todos os elementos do enredo falam sobre o processo de aceitação pessoal e, posteriormente, social de suas identidades. O sistema opressor contra o qual Neo lutava não era o capitalismo, o comunismo (ou qualquer outra ideia terminada em ismo), era na verdade o conflito entre o que ele é por dentro e como se expõe ao mundo. Antes de se tornar um herói, ele queria ser quem ele é de verdade.
“Ah, mas ele não é transexual”… e quem disse que precisaria ser para demonstrar esse conflito?
Todo o desenvolvimento do filme, que já discutimos em outro texto também, pode ser visto sob esse viés da busca pela expressão de si mesmo. Neo e todos os personagens, ao saírem da Matrix, assumem suas verdadeiras identidades, o que já se verifica automaticamente na troca do nome, quase todos eles para um nome de gênero neutro (só lembrar que no primeiro encontro entre Trinity e Neo, ele diz pensar que ela fosse um homem). Depois, ao voltarem à Matrix, conscientes de sua condição, poderiam projetar nessa simulação a imagem que quisessem, como é o caso de um dos personagens: Switch (que aliás significa “troca”), um homem no mundo real e uma mulher na Matrix.
Os humanos que despertam são capazes de fazer diversos “truques” na Matrix porque finalmente se libertam das pressões sociais e ambientais que carregam. No mundo real, todos usam roupas padronizadas, comem a mesma comida e não estão divididos socialmente pelo gênero, usam até mesmo cortes de cabelo muito parecidos, demonstrando que a ideia de gênero (sobretudo em uma sociedade militarizada e relegada às profundezas da Terra) pouco importa naquele ambiente em que o mais importante é a sobrevivência. Mulheres e homens têm a mesma voz.
Há uns meses atrás, escrevi um texto sobre a linguagem neutra, apresentando uma tentativa de olhar mais cientificamente sobre o tema, sem desmerecer o não binarismo, mas ao mesmo tempo tentando explicar as reações dos diversos grupos sociais a essa nova linguagem. Não foi incomum postar o texto nas redes, em vários locais diferentes e encontrar comentários do tipo “isso é idiotização da língua”, “querem empurrar esse discurso goela abaixo das pessoas” e até mesmo um apelo ao sentimentalismo em “vocês não pensam nos programas de leitura para pessoas cegas?” (este último vindo de pessoas não cegas e que provavelmente nunca se preocuparam com isso ao escreverem no internetês típico, como “blz” em vez de “beleza”).
Não julgo ninguém, mas poucas pessoas nesses comentários que vi se atentaram ao interesse didático e científico do tema: ao presenciarem um ponto de virada cultural e social, renegam qualquer evidência e necessidade, recusam-se a aceitar ou mesmo falar sobre e se apegam a qualquer argumento fácil de engolir para justificar seu ponto de vista (pós-verdade, é você?). Como sempre fica muito claro, os sentimentos se sobrepõem aos fatos, e isso aparece também no filme na cena a seguir.
Na conversa com o Arquiteto, são mostradas nas inúmeras TVs todas as escolhas que Neo pode fazer, mas quando ele ouve sobre a iminente destruição da humanidade e sobre a escolha mais drástica que tem que tomar, quase todas falam a mesma coisa:
(Em 4:32, o Arquiteto diz: Denial is the most predictable of all human responses, ou, “a negação é a resposta mais previsível dos humanos”. Ou seja, encarar uma mudança, seja ela qual for, é sempre mais difícil para o ser humano.)
Sim, Matrix é uma alegoria da transexualidade e sempre foi. Claro que os argumentos contrários logo surgiram de forma indignada: “ahh, mas fizeram uma alegoria muito mal feita então, porque isso não está evidente…”. Nem vamos comentar o absurdo de discordar do que uma autora fala sobre a própria obra, mas vamos considerar que interpretar alegorias é justamente a arte de enxergar além do óbvio, além da superfície. Se um movimento dito conservador quer se inspirar em alguma coisa para falar que o machismo é a iluminação das mentes, certamente não deveria usar os argumentos de Matrix.
Tomar a pílula vermelha não é despertar para uma ideia de que o mundo é assim ou assado, pois a transformação da história vem de dentro pra fora, quando os personagens passam a enxergar com os próprios olhos, e não com aqueles que foram condicionados a ver.
Iluminar a mente, nesse sentido, é entender que só se pode mudar o mundo ao se entender e respeitar a individualidade de cada um. Movimentos ultraconservadores que ganharam voz nos últimos anos são uma resposta à tentativa de exigir (o mínimo) respeito à diversidade, seja ela sexual, racial etc. mas não importa quanto eles falem alto, não vão conseguir conter as mudanças.
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Texto sensacional.
Às vezes me pergunto se a identificação dos MGTOWs e incels com o filme pode ter mais relação com o inconsciente. O problema não são as mulheres, definitivamente, até porque homens e mulheres são plurais, não é possível colocar numa caixinha, como eles fazem. Acredito que são pessoas com bastante problema com sua sexualidade tentando lidar com sua homoafetividade (não exatamente no sentido sexual, mas por só interagirem com homens e só entenderem os homens), querendo ditar regras de conduta para mulheres. O que quero dizer é que a identificação deles com Matrix vai além dessa interpretação rasa e superficial que eles criaram da “verdade”.
Obrigado pelo comentário, Elis.
Sem dúvida tem muitas questões psicológicas envolvidas nas ideologias desses grupos. A reação de grupos conservadores a qualquer ideia progressista é esperada (numa visão meio marxista, isso faz parte da engrenagem que move a sociedade), mas é difícil entender reações tão repulsivas, principalmente com relação a coisas que não os afetam diretamente. Mas de todo modo acho curioso como eles insistem em achar que entenderam a grande “revelação” do filme de um jeito totalmente oposto ao que foi pretendido pelas autoras. É pra acabar…