Conversamos com Bráulio Mantovani, roteirista de Albatroz, suspense nacional que estreia no dia 07 de março. Conhecido também pelos roteiros de Cidade de Deus, Tropa de Elite e Tropa de Elite 2, o roteirista falou sobre suas inspirações e detalhes do filme. Confira abaixo:
Bráulio, de onde surgiu a inspiração para criar esse suspense com elementos de ficção científica?
Eu não escrevi Albatroz pensando em gêneros. Não sabia que seria um suspense. E nem que teria algo da ficção científica que a gente vê, por exemplo, na série Black Mirror. Os elementos científicos de Albatroz têm pé na realidade. A neurociência avançou tanto nas pesquisas que fotografar sonhos em pouco tempo será algo quase trivial. E foi da neurociência que surgiu a inspiração para o filme. Li uma quantidade razoável de livros sobre o tema, motivado por um fascínio que há muito tenho pelo fenômeno da consciência. As disfunções neuronais, sobretudo quando acidentes causam lesões no cérebro, produzem fenômenos estranhos e curiosos na percepção e na consciência. O título daquele famoso livro do Oliver Sacks (O Homem que Confundiu sua Mulher com um Chapéu) não é uma piada. Essas coisas acontecem. Albatroz é sobre fenômenos assim. O filme é a representação de uma (ou talvez duas ou três) consciências contaminadas por percepções difusas e distorcidas. É um filme sobre os limites tênues entre o sonho e a vigília, entre o real e o imaginário, entre a razão e o delírio.
Sabemos que não é fácil fazer cinema de gênero no Brasil. Como foi o processo para vender essa sua ideia tão diferente do que estamos a acostumados a ver no cinema nacional, e fazer esse filme sair do papel?
Foi mais fácil do que eu imaginava. As pessoas curtiram o projeto. Levantamos o financiamento com uma certa tranquilidade. O dinheiro demorou a chegar por questões extracinematográficas. Mas a Paris, a Globo Filmes, o Telecine e os demais patrocinadores toparam entrar no projeto sem que a gente precisasse dourar a pílula. Chegamos com o roteiro bem avançado. E todos gostaram, mesmo sem entender muito bem a narrativa pouco usual. O mesmo aconteceu com os atores. Alguns até pediram para entrar. Não sei dizer por que tivemos essa sorte. Mas me sinto muito privilegiado por ter conseguido o financiamento e, principalmente, esse elenco dos sonhos.
O filme aborda críticas que o Simão recebe ao fotografar um atentado, ao invés de fazer algo para ajudar. Isso foi uma crítica à sociedade atual ou no caso do Simão, você acha que ele estava apenas fazendo seu trabalho como fotógrafo?
Esse detalhe da história acabou ganhando uma proporção enorme por conta da mania que todos têm hoje de filmar tudo, incluindo um caminhoneiro preso no caminhão que bateu no helicóptero que levava o saudoso Boechat (só uma mulher foi lá para salvar o cara; as outras testemunhas simplesmente gravavam seus vídeos) e um jovem lentamente assassinado por um segurança de supermercado. O filme parece estar falando disso. E de certa forma está mesmo. Mas a questão no filme é mais complexa. E foi inspirada pela história real do fotojornalista Kevin Carter, que ganhou um Pulitzer com uma foto que registrava a fome no Sudão em 1993. É uma foto chocante, que mostra um abutre a espreitar uma criança moribunda deitada no chão. É o retrato da fome mais eloquente que conheço. Carter sofreu os questionamentos éticos que eu transferi para o personagem do fotógrafo em Albatroz. Carter se deprimiu e acabou se suicidando. Simão se deprime e desiste da profissão. Foge da realidade, imaginando um dia fotografar apenas sonhos. Mas o que dizer das pessoas que filmaram a morte lenta do jovem sufocado pelo segurança do supermercado? Será que elas questionam sua atitude diante daquela tragédia? Temo que não. Simão explica sua atitude como uma reação automática, um comportamento automatizado (o cérebro faz mesmo essas coisas com todos nós): sendo fotógrafo, fotografou. Se fosse soldado, talvez tivesse interferido. É o que ele diz para se explicar. Mas claramente não é suficiente para apaziguar sua consciência. Ele desiste de fotografar a realidade. Só pegará uma câmera novamente quando for possível fotografar sonhos. É o que acontece no filme. Simão tem a chance de fotografar seus próprios sonhos. Mas as consequências são ainda mais terríveis do que aquelas da realidade.
O Simão tem um “totem” que é a bolsa que ele carrega, sempre que o vemos com a bolsa presumimos que ele está em transe. Sem querer estragar a surpresa para os espectadores, mas com a reviravolta final, estou certo em sugerir que o objeto na parede que guia toda a investigação é o “totem” de Alícia? Pode falar sobre esse dos personagens a esses determinados objetos?
Objetos sempre ajudam a contar histórias. Basta lembrar da chave em Se Meu Apartamento Falasse, do Billy Wilder. Eu nunca pensei na maleta do Simão e na foto do painel da Alícia como totens. Mas gostei da sua sacada. São totens. E tabus. A diferença é que Alícia opera conscientemente a passagem da foto da condição de tabu para a de totem. Ela elege o objeto e a posição que ele ocupa. Simão, ao contrário, não reconhece a maleta como sendo sua. Mas a leva para onde vai. De certa forma, ele vai para onde a maleta o leva. Mas não tem consciência disso. Essa relação entre Simão e a maleta é inspirada em uma perturbadora descoberta da neurociência: nós vivemos certos de que tudo o que fazemos é uma decisão consciente comandada pela nossa vontade. Enquanto digito estas palavras, acredito que elas são escolhas conscientes da minha vontade. Mas há experimentos que compravam que os impulsos elétricos que fazem os meus dedos percutirem as letras do meu teclado ocorrem alguns nanossegundos antes de a parte consciente do meu cérebro “decidir” quais teclas devo percutir. Em outras palavras, a neurociência está se perguntando, a partir de fatos concretos e mensuráveis, se há mesmo livre-arbítrio. Pode ser que o livre-arbítrio seja mera ilusão. Foi essa questão sinistra que eu tentei representar na relação entre Simão e a maleta que ele carrega. Mas ninguém precisa saber disso para sacar que aquela maleta não é apenas uma maleta. Assim como o cachimbo do quadro de Magritte não é um cachimbo.
Para finalizar, o uso da paleta de cores é importante até para mostrar o estado emocional dos personagens, e isso é muito bem pensado através da sinestesia. Em contrapartida, todo o figurino dos personagens é sempre discreto e quase monocromático. Pode falar um pouco sobre isso, e se pensou nessa solução quando estava escrevendo o roteiro ou se foi algo pensado em conjunto com o Daniel Augusto e o Jacob Solitrenick, seu diretor de fotografia?
Essa sacada de como acentuar o efeito da sinestesia veio do Dani e do Jacob. Dessa eu não posso me gabar.
Albatroz
Além de Alexandre Nero e Andréa Beltrão, completam o elenco Maria Flor, Camila Morgado, Andréia Horta e Gustavo Machado. O filme é dirigido por Daniel Augusto, com roteiro de Bráulio Mantovani, Fernando Garrido e Stephanie Degreas.
Albatroz estreia dia 07 de março.
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