O influenciador Felipe Neto, já há muito conhecido por suas polêmicas, começou esta semana no Twitter uma discussão sobre o papel da escola na formação de leitores. Sim, apesar de ele não ter falado com essas palavras, a discussão é essa. Ela é interessante e talvez seja até nova para quem não está envolvido diariamente com a educação, mas já vem de tempos essa ideia de que temos que cada vez mais democratizar o ensino, tornando-o mais prazeroso aos estudantes. Até aí ninguém discorda, claro.
Este artigo é escrito por um professor, coincidentemente de língua portuguesa, que por acaso também já acreditou que Machado de Assis não era pra adolescentes. Isso mesmo, já acreditei nisso, mas hoje defendo veementemente que a literatura seja ensinada na escola com os grandes clássicos. E curioso notar que, quando esse assunto chega às grandes mídias, sobretudo às redes sociais, é muito comum vermos os depoimentos que as pessoas dão, baseadas na emoção e nas experiências pessoais: “ahh, eu me apaixonei por literatura na escola…”, “ahh, foi uma experiência traumática ser obrigado a ler isso”. Não que a gente não possa basear discussões nessas experiências, mas raramente vamos chegar a algum lugar assim.
Há diversas variáveis a se considerar e eu também não sou exatamente um especialista em literatura para adolescentes, então não quero estender demais esse assunto. Reconheço que nossa instituição escolar (do ensino primário ao superior) é atrasada em muitos aspectos e que fatalmente tornamos a experiência escolar um porre para uma grande massa de alunos (não digo maioria porque não encontrei dados que me permitissem afirmar). Também precisamos reconhecer que literatura, e ler os clássicos, não é lá a matéria preferida da galera, além de que esse lance de gosto é sempre discutível. Tem gente que ama ler e detesta Machado de Assis, e isso é perfeitamente compreensível.
Mas aí que entra a nossa discussão sobre o papel da escola, e não só na literatura, no geral mesmo. Uma das primeiras coisas que a gente aprende na faculdade de Letras (e felizmente esses conteúdos têm sido incluídos nos currículos do Ensino Fundamental e Médio) é sobre o respeito à diversidade linguística. Muitas gerações de estudantes no Brasil foram criados na ideia de que a língua que eles falavam era “errada” e que eles tinham que se adaptar a um padrão ensinado na escola. Piadinhas com o colega que fala “nóis vai” eram frequentes (e hoje isso é chamado de bullying mesmo).
Hoje, já reconhecemos que a norma não se trata de um padrão a ser adotado por todos a todo momento, mas de uma manifestação da língua que deve ser usada em situações de formalidade. Além disso, há pessoas que por diversos motivos não tiveram acesso a uma educação formal, e debochar dessas pessoas apenas pelo modo de falar seria puro preconceito, que a gente classifica como linguístico, mas que no fundo, justamente pelo fato de as pessoas mais pobres serem justamente as que mais “falam errado”, é um preconceito social daqueles bem bravos.
Anos atrás, inclusive, surgiu uma discussão sobre um livro aprovado pelo MEC em que se ensinava esse respeito. Não era nada novo no meio linguístico, mas virou polêmica porque o livro estava ensinando a “falar errado”. Mas vejam que essa simples situação, de mudança de mentalidade, não deixou a educação escolar menos desafiadora, nem mesmo menos importante. E também não colocou no limbo nada do que se ensinava antes, só incluiu outros conteúdos, que pensando na evolução da própria sociedade, só acrescentaram. Mas lógico que os setores mais conservadores sempre vão achar ruim.
Agora, voltando à literatura, não acho de maneira alguma errado colocar livros mais “populares” nas mãos dos alunos. Aliás, o mundo ideal é aquele no qual eles mesmos pudessem escolher o que querem ler. Mas será que confiar cegamente o interesse pela leitura aos próprios alunos não eliminaria automaticamente certas escolhas deles? Percebam que hoje vemos filmes, séries e outras formas de conteúdo muito pelo burburinho gerado em torno deles. E isso não é uma crítica ao sucesso de ninguém, mas é fato que sobra pouco espaço para produções regionais, de baixo orçamento e que muitas vezes não tem uma poderosa máquina de marketing em torno.
Outro aspecto tem relação com o que discutimos aqui acima. Devemos o respeito à diversidade linguística, e é impossível ensinar isso sem a presença de grandes clássicos, que mostram como as pessoas falavam há 100, 200 anos atrás. Até o início do século XX havia poucas e ineficientes formas de registrar sons, então todo o legado de milênios de evolução das línguas (e aí não está só o português) está em documentos escritos. Livros clássicos contêm gírias e expressões que transportam as pessoas para aqueles tempos, e temos que encarar que eles representam mais do que um enredo que acompanhamos para saber o final, eles são uma ponte com o nosso próprio passado.
Por meio de um clássico, temos assunto pra história, geografia, filosofia, dá pra entendermos melhor a nossa sociedade atual, com sua configuração desigual, seus problemas, e até encontrar conteúdos de química, física e biologia. Literatura, historicamente, não era uma profissão (talvez até hoje não seja exatamente) e foi elaborada por pessoas com as mais diferentes profissões e especialidades, por isso ela trata de tantos assuntos.
Você pode ler Machado de Assis e não gostar, obviamente. Mas podemos comparar com aquela situação em que nos dão um prato novo pra experimentar: como saber o gosto se não provar? Conheci alunos que repudiavam qualquer leitura, que começaram se interessando por revistas em quadrinhos da Turma da Mônica e daí em diante foram se interessando por outras coisas até chegar aos clássicos.
Aliás, você pode não gostar de Machado de Assis, mas precisa conhecê-lo. Pense que o Brasil lá no século XIX teve um escritor negro, filho de imigrante, de origem humilde, que se “infiltrou” na alta sociedade e conquistou o respeito de um país escravocrata (isso ainda em vida), e que ao longo do tempo foi sendo “embranquecido” para representar interesses diversos das elites do país. É um personagem da nossa história a quem muitas vezes não damos o devido valor, e aí vamos aceitando aquilo que nos contam.
Por fim, pra não deixar o texto ainda mais longo, um conselho: leia os clássicos, mas reflita sobre eles, sobre o contexto, o que aquele livro representa, o que mais conta não é chegar ao final, mas a experiência. Se você não gostar, ok, sem problema algum, mas tenha em mente que a escola não é o lugar em que a gente vai aprender só o que quer. Pra formular diversas teorias sobre o funcionamento do universo, Newton começou observando uma maçã caindo na cabeça dele, então, não podemos sair por aí classificando os conteúdos como úteis ou inúteis com base só nos gostos pessoais, beleza?
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