Chegou ao fim uma das séries de maior sucesso no mundo do entretenimento contemporâneo. The Good Place conquistou a crítica e o público por tratar de temas que são sensíveis a toda a nossa realidade atualmente, mas ao mesmo tempo fazer isso de forma leve e descontraída. O mais interessante, analisando o todo da produção, é ver toda a coesão com que ela se encerra, e perceber que foi cuidadosamente planejada para acabar da forma como acabou, sem enrolações nem criação de conflitos desnecessários para dar aquela esticada e segurar um pouco mais a audiência.
O trabalho de um crítico é analisar as obras pelas características técnicas, mas falar de The Good Place sem relacionar com a sua própria experiência pessoal ao assisti-la é um tanto quanto impossível. Comecei a ver apenas porque era uma série disponível na Netflix e que parecia ser engraçadinha; depois do primeiro episódio, criei uma certa simpatia por Eleanor Shellstrop (Kristen Bell) e sua descoberta de que ela não deveria estar no Lugar Bom.
A maneira como ela se dá conta disso é hilária, mas mais engraçada ainda é a decisão que ela toma: contrariando todas as adversidades que se colocam no seu caminho, além das próprias limitações, decide se tornar uma pessoa melhor e conquistar sua vaga ali por merecimento.
![Crítica | The Good Place: toda jornada precisa de um final 1 O quarteto principal, The Good Place](https://i2.wp.com/sunriseread.com/wp-content/uploads/2019/11/when-is-the-good-place-season-4-epsiode-10-coming-to-netflix.jpg?fit=990%2C557&ssl=1)
Essa história até me lembrou de Augusto Matraga, personagem da obra de João Guimarães Rosa: “Para o céu eu vou, nem que seja a porrete” (Ok, duvido muito que o criador da série, Michael Schur, tenha se inspirado em um autor brasileiro, mas a analogia é válida) e toda a jornada dessa anti-heroína acaba por nos cativar, afinal, não importa o quanto ela tenha sido uma pessoa horrível em vida, agora foi dada a chance para ela mostrar que pode mesmo mudar.
E quando ela descobre, no final da primeira temporada, que ela e todos ali, Chidi (William Jackson Harper), Tahani (Jameela Jamil) e Jason (Manny Jacinto), na verdade faziam parte de um experimento do Lugar Ruim, ficamos boquiabertos imaginando como não podemos ter desconfiado disso antes.
Difícil uma série prender dessa maneira como The Good Place consegue, porque justamente naquele momento que imaginamos que nada mais pode nos surpreender, acontece algo bombástico e não conseguimos sossegar até ver o próximo episódio. Ainda mais considerando que se trata de uma sitcom (nas quais usualmente o enredo em si não é muito complexo), que traz discussões profundas sobre valores éticos, ciência, religião e sobre todo nosso comportamento hoje em dia.
São diversas cutucadas em muitos aspectos da sociedade, um humor ácido, mas ao mesmo tempo inocente, opondo ingenuidade e esperteza, vilania e bom-caráter, tudo isso para nos mostrar que, se a sociedade como um todo for julgada por um simples valor moral de suas ações, conferido aleatoriamente, não existiria uma alma viva (ou morta) capaz de merecer o paraíso.
Antigamente era mais fácil, pois o que você fazia gerava impacto (bom ou mau) em poucas pessoas, mas hoje a simples ação de comprar uma fruta pode impactar em milhões de pessoas, e os pontos conquistados pela boa ação são suplantados por diversas más ações que vieram em efeito cascata (a fruta pode ter sido cultivada com trabalho escravo e com agrotóxicos, o transporte dela poluiu o meio ambiente etc.).
E qual a solução então? Essa é a questão que a quarta temporada de The Good Place procura responder. A partir de um novo experimento, autorizado pela juíza Gen (Maya Rudolph), Eleanor passa a chefiar um bairro parecido com o da primeira temporada. Quatro novos humanos são selecionados (entre eles, Chidi, que acha melhor ter suas memórias apagadas) e o objetivo é o mesmo: eles devem se dar conta de que não merecem estar ali, e a partir disso ajudar uns aos outros.
![Crítica | The Good Place: toda jornada precisa de um final 2 Eleanor, The Good Place](https://news.otakukart.com/wp-content/uploads/2020/01/NUP_186635_2894.0-scaled.jpg)
As situações que envolvem essa primeira parte dessa última temporada de The Good Place podem não ser tão engraçadas quanto as outras três, mas elas servem como um divertido momento de nostalgia, ao revisitar os cenários e as peripécias da primeira temporada. Com o experimento concluído, a juíza chega a sua decisão: a vida na Terra realmente se tornou muito complexa, e o sistema de pontos não reflete essa complexidade da forma como deveria, então, a solução é reiniciar a Terra. Assim, ficamos no maior desespero para que os personagens encontrem logo uma solução para agradar a ela e impedir que todo o trabalho tenha sido em vão.
Desespero bom, obviamente, porque todo o processo se torna ainda mais engraçado quando todas as Janets do além se juntam para ajudar. É o suficiente para ganhar tempo, desenvolver uma nova proposta e apresentar para a juíza, que aceita, contanto que Shawn (o chefe dos demônios) aceite também. Ele recusa no início, mas Michael consegue convencê-lo. É aí que todo um novo sistema é desenvolvido, e o quarteto principal consegue finalmente seu lugar no Good Place.
![Crítica | The Good Place: toda jornada precisa de um final 3 Juíza Gen e Janet, The Good Place](https://pmctvline2.files.wordpress.com/2020/01/the-good-place-season-4-episode-10-judge-gen-janet.png)
Os dois últimos episódios são de pura reflexão sobre a importância do fim. Nós, seres humanos, só conseguimos aproveitar e ter consciência das coisas porque sabemos que um dia nossa jornada termina. Como já ensinaram diversos pensadores e histórias, a consciência de nossa finitude é a única motivação que temos para sermos boas pessoas e construirmos a “melhor versão” de nós a cada dia.
Mas o fim também não precisa ser algo trágico, e melhor ainda se pudermos escolher o momento propício, quando sentimos que estamos preparados para finalmente dizer adeus. Eis aí a diferença do “novo sistema”: é o próprio indivíduo quem escolhe quando quer encerrar sua existência para sempre, caso sinta que já experimentou tudo que queria e podia.
E o criador da série soube seu exato momento de dizer adeus. Por mais que esses episódios finais não tenham trazido as mesmas situações hilárias que vimos antes, eles não nos decepcionam. A transição para o fim é emocionante, mas ao mesmo tempo é tranquila e serena, porque durante todo o tempo a produção preparou o público para esse momento, afinal, esses quatro humanos, que representam tantas facetas de nós mesmos, só poderiam encerrar suas jornadas em paz e tranquilidade.
Assim, nos despedimos da série com a certeza de que muito pouco nela pode ser apontado como um ponto negativo. Depois de inúmeras reflexões existenciais, só ficamos com aquele gostinho de quero mais, mas ao mesmo tempo felizes por saber que valeu muito a pena acompanhá-la. Uma das últimas cutucadas do roteiro foi sobre Shakespeare ter escrito uma continuação (já no além) para uma de suas peças e ela ter sido horrível.
Diante de uma realidade contemporânea em que muitas produções são espremidas até o último para poder render mais alguns trocados aos estúdios, entendemos que The Good Place vai se encerrar assim e não vai ter spin-offs, continuações, prequels ou o que quer que possa ser derivado. Ela se despede assim como seus personagens: completa e em paz.
![Crítica | The Good Place: toda jornada precisa de um final 4 Michael, The Good Place](https://nerdist.com/wp-content/uploads/2019/01/Ted-Danson-the-good-place-2.jpg)
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