A história de Mulan é baseada em uma lenda chinesa bem antiga. Contada de geração em geração, ela chega aos dias atuais com uma enorme aceitação, se encaixando muito bem em um contexto mundial no qual se valoriza cada vez mais o empoderamento feminino, além é claro de se abrir espaço para outras culturas e crenças diferentes da tradição judaico-cristã ocidental.
Não é novidade para ninguém que Mulan faz parte do projeto ousado da Disney em entregar releituras em live-action das suas animações mais famosas dos anos 80 e 90. Novidade mesmo é conferir a primeira versão desses live-actions que não necessariamente está amarrada com a animação. Vimos em O Rei Leão e Aladdin, por exemplo, uma tentativa de recriar mais fielmente o filme animado, dando maior ênfase no material original, e mudando poucos ou quase nenhum detalhe das cenas.
O novo Mulan já começa diferente justamente por não se apegar a quase nada da animação de 1998, entregando apenas referências muito sutis ao espectador, principalmente em falas retiradas dos diálogos e por uma trilha sonora que aproveita alguns dos instrumentais das canções. Os fãs mais inveterados vão reconhecer a canção You’ll bring honor to us all (quando Mulan está na casa da casamenteira) bem como alguns versos de I’ll make a man out of you (na parte do treinamento para a guerra) sendo recitados, mas as referências ao desenho clássico, feliz ou infelizmente, param por aí.
Digo feliz ou infelizmente porque é inevitável esperar que o filme no mínimo se pareça com Mulan de 1998. Já foi triste, por exemplo, saber que Mushu não faria parte da história (originalmente, o personagem foi dublado por Eddie Murphy), além é claro do anúncio de que não seria um musical. No entanto, se quer uma dica, retire todo o filtro da sua expectativa e se deixe conquistar pela magia de um universo diferente, muito mais realista e bem mais alinhado ao estilo dos filmes de luta chineses.
Sim, a diretora Niki Caro, cujo trabalho de maior relevância até hoje é Encantadora de Baleias, de 2002, teve que explicar publicamente suas escolhas inúmeras vezes, mas nem seria necessário se as pessoas deixassem seu apego à animação de lado. O filme é excelente, fala de tradições chinesas de forma muito mais coerente (lembrando que o contexto é uma guerra acontecida há milênios), e além de tudo representa a rendição de Hollywood ao estilo dos filmes chineses de luta.
Então é importante deixar claro que Mulan de 2020 não se baseia, portanto, na animação, apenas aproveita elementos dela, muito provavelmente para gerar identificação com o público (exigência do estúdio, claro). A história é muito mais próxima da lenda chinesa, que já contamos aqui, e retrata uma visão muito menos hollywoodiana da história, embora, lógico, a versão de 1998 tenha feito parte da infância de muita gente. Esclarecido esse detalhe, veja sem medo porque é realmente um espetáculo visual.
É estranho para o público ocidental, talvez, encarar pessoas que praticamente voam e escalam paredes, mas isso faz parte do universo do cinema chinês de artes marciais, e é aplicado ao filme de maneira bem natural, e o que é melhor, sem ridicularizar essa cultura (impressão que facilmente teria sido gerada não fosse o cuidado com as cenas). Alguns rostos conhecidos dessa arte chinesa também estão presentes, como Gong Li e Jet Li.
Esse gênero das artes marciais chinesas é muito famoso no Oriente e de vez em quando alguma dessas produções acaba transpondo as fronteiras e vindo parar por aqui. Fizemos uma lista com alguns filmes chineses e entre eles estão alguns que merecem ser relembrados por essa arte, na qual a fotografia belíssima é o destaque. É como se cada quadro do filme fosse uma pintura, com diálogos poéticos que podem parecer, para nós, algo muito subjetivo, mas que fazem todo sentido na linguagem do cinema oriental.
Na ponta do elenco, aliás, é importante destacar que é composto exclusivamente de chineses e descendentes, finalmente levando em conta as inúmeras críticas que Hollywood sofreu ao longo dos últimos anos por falta de representatividade nas telas. O destaque é, obviamente, a protagonista Liu Yifei, que constrói uma Mulan muito honesta e crível. É muito interessante ver como seu semblante muda a partir do momento que ela deixa de fingir ser homem (com um rosto que tenta disfarçar o próprio medo) e como ela assume o posto de heroína que sempre foi (com um rosto mais iluminado e um olhar de guerreira).
O único ponto “negativo” a se apontar é o fato de todos falarem inglês. Embora a construção dos personagens seja impecável, é difícil evitar a sensação de que o filme foi dublado para o inglês, dado que toda a parte escrita das cenas está em ideogramas chineses. Mas ok, podemos relevar isso ao considerar que o filme foi produzido nos Estados Unidos, além de que, é claro, muitas pessoas o assistirão dublado em outras línguas também.
Sendo assim, é uma pena que Mulan não tenha sido exibido nos cinemas, pois seria muito interessante ver a lenda da guerreira chinesa da forma como ela foi pensada para ser mostrada. Se lamentamos isso hoje, pelo menos ainda nos restam alguns outros live-actions para vermos até onde vai a criatividade dos diretores em transformar essas animações.
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