(Antes de começar este texto, quero deixar claro que nada aqui é uma crítica gratuita ao sucesso de Cavaleiros do Zodíaco, até porque eu também já fui muito fã. Minha intenção é analisar pontos da estrutura narrativa da série que podem ser vistos como problemas, e por que isso se reflete na baixa aceitação do anime clássico entre os jovens hoje. Perdoem-me também por qualquer desconhecimento a respeito da mitologia da série, falo com olhos de um espectador comum.)
Assim como ocorre hoje com as crianças viciadas em vídeos no YouTube, quase todo mundo que nasceu nos anos 80 e 90 passou uma boa parte da infância grudado em uma tela curtindo seus desenhos favoritos. Mas quando internet, celular e computador não faziam parte da realidade da maioria das pessoas, o entretenimento vinha do meio de comunicação mais popular da época: a televisão. E como a maioria não tinha acesso ainda a serviços de TV por assinatura (eram muito caros e restritos a grandes centros urbanos), o jeito era se virar com o que tinha na TV aberta mesmo.
Um dos grandes desafios dos canais de TV aberta era garantir horas ininterruptas de diversão para seus espectadores mirins durante as manhãs e tardes e ganhar um dinheirão com os anúncios de brinquedos e outros produtos destinados ao público infantil. Lembramos que esses anúncios hoje são muito mais restritos e regulados por órgãos competentes (o que é justo), e isso acabou desestimulando a própria existência de grades destinadas às crianças na maioria dos canais (sim, meus caros, o fim da TV Globinho não é culpa só da Globo). Veja quantos comerciais de produtos infantis apareciam no intervalo (no vídeo tem até uma propaganda política):
A extinta Rede Manchete, que foi absorvida pela atual RedeTV, foi um dos canais que mais investiu nas atrações destinadas às crianças, trazendo pela primeira vez ao Brasil muitos dos animes de maior sucesso da época, o maior de todos, talvez, um que ficou conhecido aqui no Brasil pelo nome de Cavaleiros do Zodíaco (Saint Seiya, no original). O público brasileiro também não era consumidor de mangás (os primeiros surgiram ali no final da década de 1980), então, para a maioria absoluta das pessoas, aquele foi o primeiro contato com o mundo otaku e, mais especificamente, a lenda dos defensores de Atena.
Aliás, uma das coisas que mais provoca saudosismo nos fãs da TV brasileira em geral é falar da Manchete. A emissora chegou a bater de frente com a Globo numa época em que isso era quase impensável. Produziu muitas novelas que ainda hoje são lembradas pela qualidade de produção, e exibiu muitos desses animes de maior sucesso, incluindo Cavaleiros do Zodíaco, em horário nobre, o que provocava uma verdadeira briga pelo controle remoto naquele tempo em que a maioria das casas só tinha um aparelho de TV.
Estreando em 1º de setembro de 1994 (quase 26 anos, portanto), o anime mostra a história dos cavaleiros de Atena: Seiya, Shiryu, Shun, Hyoga e Ikki. Os cinco são jovens enviados para diversos lugares do mundo a fim de conquistarem suas armaduras de bronze e proteger a deusa, que estava encarnada em Saori Kido. O avô de Saori havia enviado os jovens (exploração de trabalho infantil? Não é pra tanto!) para treinar e serem os protetores dela, que desde bebê era ameaçada pelas forças do mal.
As armaduras deles eram baseadas nas constelações, da forma como classificadas no antigo mundo grego (a mais conhecida hoje). Cavaleiros de bronze e de prata representavam as periferias da abóbada celeste, enquanto as constelações zodiacais (no eixo de rotação da Terra) eram representadas pelos doze cavaleiros de ouro, cada um portando um signo. Com certeza, esse também foi o primeiro contato de muita gente com a astrologia e a astronomia (eu sei que são conceitos diferentes, mas ambas são baseadas na observação do céu).
Cavaleiros do Zodíaco foi um sucesso arrebatador e isso é indiscutível, tanto que na mesma época de publicação dos mangás e produção do anime surgiram diversas outras histórias de “guerreiros com armaduras” combatendo o mal. Nem todas fizeram sucesso ou chegaram a ter algum reconhecimento, mas a Rede Manchete exibiu muitas delas até o ano de 1999, quando foi extinta. Essa profusão de histórias similares tinha também outra característica em comum: os guerreiros tinham suas armaduras baseadas em alguma mitologia (Cavaleiros do Zodíaco, da Grécia; Shurato, da Índia; Samurai Warriors, do Japão; tudo passou na Manchete).
Abertura de Cavaleiros do Zodíaco e outros animes
Como já mostramos aqui, a abertura de Cavaleiros do Zodíaco foi um marco para toda criança dos anos 90. O anime teve várias aberturas diferentes, todas com versão em português, e até as músicas de encerramento e outras que tocavam ao longo dos episódios ganharam versões brasileiras, tanto que até CD foi lançado com a trilha sonora.
Essa é uma característica dos animes mais antigos que dificilmente é incorporada aos animes de hoje. Temos diversas razões pra isso, a principal delas comercial: já que o fluxo de material vindo do Japão passou a ser muito maior, fica mais difícil adaptar as canções para o português. A dublagem hoje é feita de maneira muito mais industrial do que antes, e adaptar canções sempre é uma dificuldade maior.
Por outro lado, podemos apontar também que o público consumidor de animes é muito mais restrito hoje, embora tenha crescido em número absoluto. Lá na década de 90, e até no começo dos anos 2000, os animes passavam na TV aberta e sempre eram dublados, por isso o público era muito mais diversificado. Hoje, quando se formou toda uma cultura otaku, os animes são mais procurados por quem já é do meio, o que até mesmo chega a afastar novos adeptos.
Em geral, hoje os otakus de maior número são jovens de classe média, que têm acesso a material legendado. As canções portanto, ficam em segundo plano, e na maioria absoluta dos casos não são adaptadas para o português.
Brinquedos baseados em Cavaleiros do Zodíaco
E o sucesso dessas séries animadas veio muito acompanhado do sucesso dos brinquedos baseados nelas. Em qualquer camelô das grandes cidades era muito comum encontrar os bonecos e suas armaduras, cheias de pequenas pecinhas desmontáveis. O sonho de qualquer criança era ter uma delas, ainda que fosse só pra ficar montando e desmontando as armaduras.
Além dos camelôs, as famosas lojas de 1,99 contavam também com versões genéricas dos bonecos, mas, se você quisesse as peças originais, o valor, a exemplo de hoje, era bem salgado, a diferença é que na época o salário mínimo era em torno de fabulosos R$ 60,00 (ter uma coleção de originais era impensável pra qualquer pessoa de classe média a pobre).
Era tanto brinquedo e produto com a marca dos Cavaleiros do Zodíaco, licenciados ou não (e dos animes similares), que é difícil hoje dizer se quem nasceu primeiro foi o ovo ou a galinha, ou melhor, se o sucesso dos animes provocou o sucesso dos brinquedos ou vice-versa. Podemos chutar que uma coisa alimentou a outra, e mesmo os brinquedos falsificados tinham uma boa qualidade (se eram aprovados pelo Inmetro, é de se duvidar), o que com certeza ajudou a popularizá-los.
Problemas de Cavaleiros do Zodíaco
Mas a história original de Cavaleiros do Zodíaco hoje é tida como um tanto maçante por muitas pessoas, principalmente pelos mais jovens. Nem por isso o interesse pelo anime diminuiu, e a maior prova disso é que diversas histórias aproveitando o universo criado por Masami Kurumada já saíram e continuam saindo. Tendo ou não gostado dela na infância, é possível hoje vermos pessoas mais velhas que ainda idolatram os Cavaleiros do Zodíaco, e essas mesmas repudiam as novas histórias.
Fato é que os tempos mudaram e as pessoas optam por consumir entretenimento diferenciado hoje. Não que a história original mereça qualquer descrédito por tudo isso, mas vamos então aos pontos que incomodam algumas pessoas (falo bastante em primeira pessoa, por ser a minha percepção, mas são comentários que costumamos ver).
O drama cíclico das lutas
https://www.youtube.com/watch?v=ecrW1T-S50E
Quando criança, eu não gostava de Cavaleiros do Zodíaco, e me lembro muito bem por quê: parecia que os cavaleiros protagonistas estavam sempre apanhando. Quando comecei a entender melhor a história, até passei a gostar, mas essa impressão nunca se desfez, porque, de fato, não é só uma impressão.
Parece que Masami Kurumada elevou muito ao extremo sua vontade de representar guerreiros virtuosos que superavam seus limites, porque eles precisavam superar limites até mesmo lutando contra o mais pífio inimigo. Ok, a mensagem é positiva, e representava também um espírito de uma época em que tudo parecia ser mais simples do que hoje, mas será que “Seiya e os outros” não teriam capacidade de ganhar uma luta decisiva sequer sem ter a armadura destruída, ficar sem os cinco (seis, sete, oito) sentidos ou quase perder todo o sangue do corpo?
Difícil dizer por que isso acontecia de forma cíclica, pode ser que fosse falta de criatividade ou aposta em reviravoltas que deram certo com os primeiros fãs. Mas fato é que esse nesse ponto dificilmente a história vai conquistar novas gerações, porque hoje as pessoas inevitavelmente esperam algo mais.
Atena, a deusa da guerra, era um peso morto
![Cavaleiros do Zodíaco | Por que o anime de maior sucesso dos anos 90 envelheceu mal 2 Cavaleiros do Zodíaco - Saori](https://i.pinimg.com/474x/79/ec/83/79ec83e23bcab014334c96749c7ffc1d.jpg)
Na mitologia grega, Atena era a deusa da guerra (não apenas isso, mas da inteligência militar e das artes, ou seja, alguém com refinamento), e faz sentido que seja ela a guardiã da Terra na história. Porém, mesmo sendo uma deusa, tendo centenas de cavaleiros de armadura (divididos em classes, ainda) à sua disposição, Atena era um peso morto para os heróis. Toda a história é movimentada a partir das enrascadas em que ela se metia (geralmente ficando presa e incapaz de fazer qualquer coisa) e da tentativa dos cavaleiros de salvá-la.
Não era culpa dela obviamente. Sequestrar Atena era parte dos planos dos vilões (em geral, outros deuses) para conquistar a Terra. Mas a premissa de que os cavaleiros, reles mortais que vestiam uma armadura, deveriam enfrentar os deuses para salvar a donzela em perigo remonta a narrativas tão antigas (e, por que não dizer, antiquadas) que a história oferece muito pouco para o espectador contemporâneo, acostumado a ser surpreendido com uma reviravolta impressionante no final.
Maniqueísmo (o bem contra o mal)
![Cavaleiros do Zodíaco | Por que o anime de maior sucesso dos anos 90 envelheceu mal 3 Cavaleiros do Zodíaco](https://player1world.files.wordpress.com/2015/09/saint-seiya-soldiers-soul_2015_06-22-15_001.jpg)
Maniqueísmo pode ser definido de forma bem simples como uma divisão clássica entre o bem e o mal. Os personagens de uma história maniqueísta são sempre mocinhos ou vilões, nunca transitam entre uma personalidade e outra de forma mais complexa (o vilão até pode ficar do lado do bem ou vice-versa, mas nunca há aquela dualidade que engana o espectador).
Diante de uma realidade contemporânea com histórias de personagens cada vez mais complexos, Cavaleiros do Zodíaco parece estar um tanto parado no tempo, sem desenvolver a personalidade de seus personagens, que parecem agir apenas pelo puro instinto de sobrevivência. Pense, por exemplo: será que eles nunca teriam um plano para defender a deusa e impedir que ela fosse sequestrada? Parece que seria importante diante de uma realidade em que você precisa protegê-la para manter a Terra a salvo.
Hoje em dia muitas histórias têm investido nessa personalidade mais anti-heroica dos protagonistas (o que também, de certa forma, começa a ficar chato), e isso com certeza afeta a forma como os jovens enxergam a série clássica.
E você, gosta de Cavaleiros do Zodíaco? Comente aí outros motivos que levam os jovens de hoje a não gostar da história.
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Outro grande problema, que me fez nunca gostar deste desenho até hoje, era aquela mania de ficarem narrando o obvio o tempo todo. Até parecia que estávamos assistindo a uma rádio novela.
Lembro até hoje da idiotice de Seya lutando contra Hades.
-Hades o prende psíquicamente e o joga num buraco interdimensional depois de um monólogo interminável sobre um soco deferido por um deles.
-Seya se pergunta “Quê está acontecendo?” (Ele mesmo reponde) “Oh não! Estou sendo sugado por um buraco interdimensional!”
Pra quê isso?
Será que era a dublagem? Ou, no original japonês realmente era tão ruim assim?
Da a entender que eles pensavam que as crianças eram retardadas e não bastaria só a imagem pra contar a narrativa!
Olá, Derick!
Pois é, acredito que se trata realmente de algo que vem do original japonês. Embora eu nunca tenha visto o anime no original, o mangá é bem assim, explicado nos mínimos detalhes, como você falou (afinal no mangá não temos movimento), e assim foi transposto pro anime.
Hoje me ocorre que isso até facilita, por exemplo, pra pessoas com alguma deficiência, principalmente visual, mas duvido muito que estavam pensando nessas pessoas ao fazer dessa forma. Aliás, esses animes dos anos 90 apresentavam bastante essa característica de diálogos intermináveis enquanto as lutas estavam acontecendo, de repente era só uma “moda” mesmo hahaha.
Obrigado pelo comentário.