Já faz um certo tempo que foi confirmado, no elenco de Adão Negro, a atuação de uma pessoa assumidamente não binária, Quintessa Swindell. O público conhece Quintessa da série Gatunas, da Netflix, e como lá se apresenta com trajes e estilo feminino, muitas pessoas a chamam então de “atriz”, o que acabou gerando certa discussão no anúncio de sua escalação para o elenco do filme da DC, já que ela não é ator ou atriz. Aliás, neste texto, vou me referir a Quintessa como ela, mas porque estou tratando por “pessoa”, cujo gênero (gramatical) é feminino.
Não é de hoje que a discussão em torno da diversidade de gênero permeia vários aspectos da sociedade. Na Grécia Antiga, a pederastia (relação entre dois homens) não só era algo comum como também incentivado, o garoto jovem só seria incluído como cidadão (lembrando que o conceito de cidadão era diferente) se estivesse envolvido com um homem mais velho.
É da Grécia também que vem a história da poeta Safo, da Ilha de Lesbos (que origina o nome “lésbica” para designar a mulher homossexual), ícone da lírica que trata do prazer feminino. Na Antiguidade, nada disso era motivo de escândalo, mas com o crescimento de religiões monoteístas, sobretudo o cristianismo e o islamismo, que condenam as “práticas homossexuais” em suas doutrinas, toda a sociedade passa a ver o fato como degeneração e tornando a mera menção ao tema um tabu.
Por milênios, a humanidade escondeu de si mesma o que julgava ser um desvio de comportamento, mas com o crescimento da complexidade das sociedades, o século XX trouxe outras discussões. Surgiram a arte cinematográfica, a fotografia se tornou popular, as pessoas passaram a se organizar em movimentos de luta por direitos. Falo das manifestações artísticas porque elas passaram a trazer os temas à tona, não porque elas tenham sempre o poder de representação fiel da realidade, aliás, muitas vezes elas também acabam distorcendo a própria realidade.
Por exemplo, por anos e anos o “gay” foi representado na TV e nos filmes como o personagem histérico, afeminado, uma caricatura que rendeu personagens memoráveis, como Vera Verão (que na verdade era drag queen, mas a discussão na época não ia tão longe), um dos grandes sucessos dos anos 90.
A função de personagens do tipo em outras histórias era representar um alívio cômico muitas vezes, e quando tinham alguma importância nas tramas era apenas como fiel escudeiro de uma mulher (que geralmente estavam atrás de algum homem), porque ser amigo de outro homem ou participar minimamente de alguma parte do “universo masculino”, nem pensar.
A esses personagens sempre foi negado qualquer envolvimento amoroso, qualquer par romântico, afinal, tudo bem ser gay, mas querer “empurrar goela abaixo que gays têm direitos e que podem se relacionar, amorosamente ou não, com outras pessoas em sociedade” é demais. O discurso que imperava, e ainda impera, é de que qualquer comportamento desviante é um escândalo, uma ofensa à família tradicional, e deve ser combatido para não influenciar as crianças.
Homens gays e mulheres lésbicas só poderiam existir e ser representados no plano do absurdo, sem poderem demonstrar desejos e se comportarem como humanos (que afinal são). Claro, qualquer discussão sobre sexualidade, hétero ou homo, era tida como tabu: falar de prazer sexual em uma novela ou filme? Imagina, isso é coisa de gente depravada, que não tem vergonha na cara. Cada um cuida da sua vida privada, mas não podemos falar abertamente sobre isso pra não influenciar ninguém.
Imagina então quando a discussão foi além da mera orientação sexual. Pessoas que nunca entenderam o que quer dizer sentir atração por alguém do mesmo sexo tendo que entender o que significa a não correspondência entre gênero biológico e gênero social.
E além disso a falta de correspondência entre a própria identidade de gênero e orientação sexual (por que um homem, por exemplo, “mudaria de sexo” para se relacionar com uma mulher?), e posteriormente o reconhecimento de outros tipos de sexualidade (bissexuais, assexuais, pansexuais etc.) e de identidades de gênero diferentes… tudo isso deu um nó na cabeça de muita gente, mesmo aquelas que tinham as mentes mais abertas, quem dirá nas de quem não queria aceitar desde o começo.
O que significa ser não binário
Todos os seres humanos, quando nascem, ganham um documento em que está registrado o seu nascimento. Como somos uma espécie dioica (termo da biologia que indica uma espécie cujos indivíduos se dividem em dois sexos), esse documento traz o registro de que nascemos com um sexo biológico: masculino ou feminino.
Essa atribuição primária é baseada apenas na observação do órgão genital, ou seja, ela indica qual estrutura reprodutiva aquela pessoa que nasceu tem dentro de si (e vejam bem, a biologia também admite a existência de pessoas com os dois sistemas reprodutivos ou nenhum). Ah, e também recebemos um nome baseado nessa observação.
Anos atrás, uma questão do Enem se tornou polêmica porque trazia a seguinte afirmação, da autora feminista Simone de Beauvoir:
O pequeno texto, que apenas contextualiza uma das afirmações da autora, gerou a maior polêmica por parte de pessoas que nem tentaram compreender o teor da afirmação, apenas criticaram o uso do que chamaram “texto subversivo” no maior concurso do país, afinal de contas, se um bebê nasce com uma vagina, é mulher, o que esses esquerdistas querem colocar em dúvida?
Na verdade, a ideia (tão simples) que Simone queria passar era que ser homem ou ser mulher é parte de uma construção social, e como qualquer outra construção, passa por diversos processos e filtros que vão modelando o ser humano, tornando-o quem ele é. Não há motivo para discussão, medo ou dúvida, é uma constatação: um bebê nascido com uma vagina é uma fêmea humana, mas não uma mulher.
Ela vai apresentar certos traços característicos biologicamente e se desenvolver de forma semelhante às humanas do mesmo sexo, mas não está escrito ali naqueles cromossomos XX que ela deve usar saias, brincos, deixar o cabelo crescer, ou mesmo que ela será vítima dos olhares maliciosos dos bebês que estão ao lado, mas nasceram com pênis. E se ela crescer e se entender de uma forma minimamente diferente desse padrão que a sociedade espera dela? Ela pode ser uma fêmea humana, mas o que vai torná-la mulher?
Essa ideia sustenta muitas das discussões contemporâneas sobre feminismo e sobre emancipação feminina, e tem tudo a ver com o nosso assunto. Ok, existem dois sexos biológicos, macho e fêmea, mas quantas possibilidades existem, no mundo de hoje, com relação ao gênero social? Aliás, o que é esse tal de gênero (palavra que virou tabu também)? Em uma sociedade que se desenvolveu de formas pouco antes previstas e imaginadas, ainda faz sentido dividirmos as pessoas em homens ou mulheres e esperar que todos correspondam a um ou outro padrão?
Parece plausível que na sociedade atual tenhamos conhecimento e recursos para entender melhor esse ponto do não binarismo. Mas o importante é entender isto: a sexualidade humana é complexa, e a identidade de gênero não se resume apenas a uma figura masculina ou feminina (os gêneros binários), podendo variar entre outras formas que não correspondam perfeitamente a um ou a outro gênero.
Aí vem o discurso “Ah, mas a ciência prova que só existem dois, não vem com essa não, seu comunista!”. Bom, como já disse, não estamos falando de sexo biológico, e na verdade a ciência tem se dedicado sim ao estudo dessa diversidade de gênero, só não temos ainda materiais tão abundantes e disponíveis para o grande público, é só esperar mais um pouquinho e veremos.
(Curioso que as mesmas pessoas que se valem do argumento científico para criticar essa complexidade acabam também falando barbaridades sobre conhecimentos científicos consolidados, sendo contrários à vacina ou questionando o formato da Terra. Pelo jeito a ciência só serve pra essas pessoas quando justifica os próprios preconceitos mesmo.)
Mas e a linguagem neutra, dá pra aceitar?
Recentemente, temos visto e ouvido discussões nas redes sociais sobre o tema da linguagem neutra. Como toda novidade, claro que causa espanto, estranheza, não parece certo, mas na história dos fenômenos linguísticos sabemos que novidades nunca foram bem acolhidas por ninguém.
Não é raro encontrar historicamente defensores fervorosos de uma gramática pura, única, perfeita, que vinha sendo “degenerada” por uma língua popular toda impura, diversificada, imperfeita (e vejam aqui como os discursos conservadores sempre se alinham no sentido de combater o que é estranho a eles).
Um exemplo que podemos apontar, e que é relativamente recente, é o da palavra “presidenta”. Dilma Rousseff foi eleita em 2010 a primeira mulher que ocuparia o cargo de chefe do Poder Executivo nacional, e quando assumiu o cargo começou a assinar os documentos oficiais e aparecer em seus pronunciamentos como a presidenta do Brasil, tratando a si mesma como tal.
Não demorou para surgirem os fervorosos defensores da gramática (muitas vezes em textos cheios de incorreções da norma-padrão) dizendo que aquilo era errado, e recorrendo ao “dicionário mais próximo” para apontar que aquela palavra não existia e que seu uso deveria ser execrado instantaneamente.
Como professor de português e revisor de textos, claro que recorro ao dicionário para resolver inúmeras dúvidas, mas do ponto de vista de aspirante a linguista que sou, a situação de usar o dicionário para “provar” a (in)existência de uma palavra é risível.
Dicionários são livros que passam por atualizações constantes, inclusive, diziam meus professores da faculdade, assim que publicados já estão desatualizados, porque a língua não respeita limites de tempo entre uma publicação e outra para se modificar, criar novas palavras, aposentar outras. Os falantes estão constantemente alterando a forma de se entender e de se falar a língua, como um organismo vivo que sofre constantemente a replicação do DNA.
E a língua não está isenta de sofrer influências sociais, econômicas, políticas, enfim… Na verdade, a língua é uma expressão de todas essas influências, acompanhando as mudanças que ocorrem em uma sociedade e reinventando conceitos. Quantos países no mundo tiveram mulheres ocupando a presidência? Será que presidenta “não existe” porque ela está em desacordo com todas as possibilidades da norma gramatical ou porque o número de “presidentas” é tão pequeno que nunca pensamos em flexionar a palavra para adequar ao gênero gramatical feminino? A resposta, claro, não é tão simples, mas o caminho para entender melhor a questão pode sair dessa reflexão.
Sobre a busca por um gênero neutro, o português não conta com essa solução organicamente, vamos dizer assim, então a solução foi interferir de uma forma mais drástica. Como muitas palavras que não carregam em si uma marcação de gênero ocorrem com a vogal “e” (estudante, paciente, ignorante), essa foi uma solução encontrada, por isso as formas todes, menines etc. O inglês já comporta essa possibilidade gramaticalmente, então para eles pode ter sido um tanto mais fácil se acostumar com a ideia (por isso a palavra they já foi eleita como a palavra do ano por conta dessa questão).
Mas se a sua preocupação é o português, pode ficar tranquilo, ele vai sobreviver. Assim como o pronome “você” também não existia lá no século XIII, muito menos “a gente” (para se referir à primeira pessoa do plural) e ambos passaram por diversas formas e entendimentos até chegar ao que hoje é reconhecido pelas gramáticas. Ou seja, não tem desculpa pra ridicularizar a tentativa de obter uma linguagem neutra com a hipótese de que não existe tal palavra no português.
E Quintessa?
Se você procurar o artigo na Wikipedia vai verificar que, para se referir a Quintessa, usaram o pronome “they” (não “he” ou “she”, e muito menos “it”). Embora possa parecer estranho para quem está aprendendo inglês, porque they é o pronome de terceira pessoa do plural, o uso tem se difundido cada vez mais para se referir a esse gênero neutro, ou melhor, ao fato de que Quintessa não se reconhece em um dos gêneros binários. Ahh, mas isso pode dificultar pra quem está aprendendo… ok, claro, mas há uma série de questões que dificultam a vida de quem está aprendendo outra língua, esse é o menor dos problemas, sem dúvida.
Mas então quer dizer que agora não pode chamar mais ninguém de ator ou atriz, ou de qualquer outra palavra que tenha gênero marcado? Claro que pode, mas se você chamar uma pessoa por um gênero que não corresponde a ela (de forma inocente ou por desconhecer a pessoa), ela vai te corrigir, você vai aceitar isso de coração aberto e vida que segue.
A linguagem neutra de gênero não é uma imposição legislativa que vai punir severamente quem desvia do caminho (se alguém discutir com você sobre isso, observe primeiro a sua postura em relação ao fato), a norma-padrão continua padrão e ninguém vai precisar sofrer.
Ah, mas então agora pode tudo? Posso começar a inventar palavras e regras gramaticais e exigir que as pessoas sigam? Bom, se você tiver um motivo plausível (“porque eu quero” ou “porque sim” não é um) e encontrar pessoas que concordem com você e que queiram se sentir representadas daquela forma, você tem total liberdade. Se essa interferência pegar entre as pessoas, quem sabe daqui a alguns anos vai aparecer em uma gramática, ou no dicionário.
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Achei muito válida a reflexão e discussão, mas queria apenas dizer que Vera Verão era drag queen e nao3 travesti.
Olá, Edgar,
Você está certo, texto corrigido, obrigado pela observação.
Porém, apenas pra complementar, como afirmei ali, a discussão na época não ia tão longe a ponto de diferenciar travesti e drag, o próprio Jorge Lafond, intérprete da Vera Verão, dizia que a personagem foi inspirada nas travestis “barraqueiras” que ficavam na praça. Então sim, a personagem Vera Verão era uma drag, mas inspirada em uma travesti, por isso a confusão ali.
Obrigado pela leitura, continue acompanhando que sempre vamos trazer essas discussões.
Faz tempo que eu não leio tanta merda junta, e olha que eu só suportei ler uns 30% do texto.
Não temos medo de debate, João. Leia os outros 70% e nos diga por que acha tão ruim assim. Se você comentou só pra ser troll da zoeira (o que deve ser o caso), saiba que não tem graça nenhuma, isso até foi divertido lá nos primórdios da internet, mas agora é só uma atitude infantil mesmo.
Se você leu só 30% nem chegou na parte mais interessante ainda. Vamos lá, como eu disse, queremos o debate.
Adorei o texto! Só complementaria ali no final que, respeitando a diversidade, é possível, sim, criar regras e vocabulário (lembrando também da especificidade de cada gênero textual). Liberdade de expressão não é liberdade de ofender.
É isso aí, Elis!
É claro que muita gente preconceituosa poderia encontrar nessa possibilidade uma maneira de exprimir seus preconceitos (o que na verdade já deve acontecer), então é importantíssimo o que você disse.
Obrigado pelo comentário.